Um restaurante quase vazio. António entra quase a medo, não sabe se
fez bem em escolher aquele sítio para matar a fome. Mas também não havia
muita escolha. Tinha que parar em algum sítio e de cada vez que
percorria mais um quilometro sentia-se ainda mais perdido. E isso
aumentava ainda mais a sua natural insegurança. Mesmo assim lá entrou,
quase a medo como já se disse. Numa mesa do canto um casal mais o filho
vão conversando sobre uma série de pratos fumegantes. Numa outra mesa,
em frente ao único televisor da sala, uma senhora de idade que vai
acabando de beber um café enquanto observa apreensiva as notícias
televisivas. A única outra pessoa presente na sala é um homem alto e
magro, camisa branca e calças pretas e que se dirige a ele com um
sorriso nos lábios. "Boa tarde. É só o senhor?" António acena que sim e o
homem convida-o a sentar numa das mesas vazias. Rapidamente lhe traz um
cesto com pão e uma tigela de azeitonas, enquanto vai falando
incessantemente sobre os pratos do dia, sem nunca perder o seu sorriso.
António não sabe pensar se o homem está a ser genuinamente simpático ou
se aquilo é apenas uma cassete de restauração. Após o que lhe parecem
horas, lá consegue dizer ao delgado empregado que apenas deseja uma
sopa. Pode ser a do dia, uma canja de galinha. O empregado garante-lhe
que é uma boa escolha e despede-se com um obrigado na direcção da
cozinha. Do outro lado da pequena sala, a senhora desvia o olhar da
televisão e, olhando nos olhos de António, diz-lhe "Vai gostar muito da
canja. É uma especialidade da Idalina.". António fica surpreendido, mas
rapidamente percebe, pelas palavras que a senhora lhe vai dizendo e pelo
retrato de um casal pendurado por cima da família do canto, que aquela
senhora é filha dos fundadores do restaurante e a provavel actual
proprietária do mesmo. A senhora continua a falar com ele sobre comida, o
tempo lá fora, as notícias da televisão, a terra onde estão, enquanto
António vai interpondo aqui e ali um ou dois monossílabos, limitando-se a
maior parte do tempo a ouvir a senhora, nunca se cansado das suas
palavras. Talvez que estas pessoas sejam realmente assim, simpáticas e
interessadas nos seus clientes. Chega a canja. O empregado deseja-lhe
bom apetite e segue para a mesa do canto. A família acabou a refeição e
está a pagar a conta enquanto se vão rindo com o empregado de um
comentário do filho. António vai comendo a canja e fica maravilhado com o
quão saborosa é. Há muito tempo que não comia algo tão bom. Talvez que a
última vez tenha sido o prato que a sua mulher lhe preparou na noite
antes de partir. Desde esse dia que ansiava por comer algo que lhe
lembrasse a sua casa, a sua mulher, o seu filho. E era isso que aquela
canja lhe lembrava, o calor da sua terra. A família passa pela sua mesa e
todos eles se despedem amistosamente dele e a mulher diz-lhe mesmo
"Prove a alhada de cação, vai ver que está uma maravilha!". Despedem-se
com sorrisos da dona do restaurante e saem para a rua. António está
desconcertado. Já não pensava que pudesse haver pessoas assim. É sinal
que está realmente longe de casa, longe das pessoas cínicas e frias da
sua terra. Além da sua esposa e filho, já não pensava sequer em algum
dia conversar com outras pessoas, quanto mais pessoas desconhecidas. Mas
aqueles desconhecidos do restaurante fizeram mudá-lo de opinião. Afinal
ainda há esperança para estes dias. António terminou a sua sopa e
sentia-se perfeitamente satisfeito. Pediu a conta ao empregado. Este
estranhou e perguntou-lhe "Mas o senhor não quer nenhum prato principal?
Temos uns quantos do dia e são tão bons.". António agradeceu ao
empregado com palavras simpáticas e à senhora de idade, que olhava para
ele inquisitoriamente, com um aceno e um sorriso. Sentia-se satisfeito, a
canja tinha-lhe aquecido a alma. Enquanto dizia aquilo, António não
podia sentir uma certa estranheza nas palavras que dizia, há muito tempo
que não usava expressões assim, directamente do coração. Pagou a conta e
despediu-se com apertos de mão aos dois e com o desejo que dissessem à
D. Idalina que a canja estava maravilhosa. Agradeceu uma e outra vez a
hospitalidade e fez votos de que viessem melhores tempos, com mais
clientes e sala cheia. Cá fora, o sol dava um ar da sua graça. A chuva e
o nevoeiro pareciam ter fugido para outro lado. Enquanto se afastava do
restaurante, levou a mão ao casaco e sentiu as formas perigosas do
revólver. Não, pensou ele, não desta forma. Aquelas pessoas não mereciam
que ele roubasse a caixa registadora. Aquelas pessoas mereciam melhor
do que um estranho a estilhaçar a vida deles. Aquelas pessoas estavam a
passar pelas mesmas dificuldades que ele. Elas não mereciam estar na
mira de uma arma e ele nunca se perdoaria de ser às suas custas que iria
pôr comida na mesa da sua família. Sim, ele tinha de lutar pela sua
mulher e pelo seu filho com todas as armas que estivessem ao seu dispôr.
Mas aquilo não. Roubar aquela casa era algo que ele não podia fazer,
algo dentro dele não o deixaria e sentir-se-ia como se estivesse a
vender as últimas réstias da sua dignidade. Talvez que fosse altura de
se deixar daquela vida, atravessar a fronteira, voltar a casa e arranjar
outra forma de trazer dinheiro para a sua família. Talvez que ainda
possa haver uma vida decente. Talvez que a honestidade e um sorriso
simpático ainda tenham lugar neste mundo...