"Não basta morrer para conhecer o sorriso de Deus -
mesmo que, como foi o meu caso, se tenha vivido abismada nele uma vida
inteira. Quando o pior acontecia, aquele sorriso descia às minhas trevas
com um soluço de baloiço, um gingar de gonzos arrancado às cordas da
infância. Eu sentava-me nele e subia, balouçando até à luz. O pior
aconteceu-me cedo, tive sorte. Deus procura primeiro os que sofrem antes
do conhecimento específico da dor, talvez porque os outros sabem
demasiado para puderem ser salvos. Tu dizias que era o contrário: que
Deus nasce da ignorância própria dos sofrimentos prematuros. Mas tu, meu
aluno dilecto, cedo te deixaste povoar pelo excesso do saber. Deus não
sabia nada do Universo quando o criou. Imagino que se sentiria só.
Imagino que num momento impreciso dessa solidão se terá tornado maior do
que Ele próprio, estourando numa gigantesca flor de luz. E imagino-O,
depois, tentando dar um sentido particular a cada uma das pétalas dessa
luz dispersa. Agora que saí do corpo que fui (...) imagino-o melhor
ainda, ébrio de luz, lúcido, encandeado por um Lúcifer oculto e criador
incrustado no seu próprio ser, em estado de paixão com a história
desencadeada pela sua omnipotente solidão. E balouço no Seu sorriso
outra vez, a vez definitiva porque o meu corpo está lá em baixo, num
caixão, contemplado e lembrado e chorado pela última vez. Não me
levantarei da cama amanhã depois de Lhe pedir em surdina que dê um
impulso maior ao balouço, que o empurre com força até que os pés me voem
para fora do calor aterrado dos lençois. Ninguém vai estar à minha
espera, não terei de me disfarçar de desculpas, não voltarei a iludir ou
desiludir ninguém. Não voltarei a morrer no corpo do único homem que me
abriu no corpo a passagem secreta para a morte. Não voltarei à
desilusão do renascimento. Sobretudo não voltarei a desiludir-te a ti, o
descrente que me ensinou a crer melhor, o meu pequeno e velho Deus de
algibeira, o meu amigo. Despojada de corpo é-me mais fácil
transformar-me no próprio balouço, na luz dançante de que ele é feito.
Num murmúrio de vento peço-lhe que não me empurre tão depressa por esse
lugar iluminado que é a Sua Carne, peço-lhe que me deixe matar saudades
desse mundo que deixei tão de repente. Matar saudades de ti. Ou
matar-te, como fazem as crianças, para recomeçar uma outra história, no
balouço quotidiano do teu sorriso."
Inês Pedrosa
(Já passaram sete dias. Sete dias onde parece que o coração começa a recuperar. Mas o bocadinho que se partiu continua por substituir, como uma asa quebrada, sem direito a tala que a indireite. Como se a dor que ainda sinto precisasse de algo mais para mostrar que está presente. Saudade. Saudade a inundar tudo, avassaladoramente. Ainda que a família me segure. Ainda que as amizades puras me dêem a mão e me levem para a claridade da luz do dia. Ao fim do dia, a tua memória volta sempre ao âmago da minha alma. E as lágrimas fazem uma ténue aparição. Quando já eu pensava que era impossível chorar ainda mais. E continua a doer. Mas depois esqueço isso e recordo todos os momentos bonitos em que o teu sorriso preencheu a minha vida. Todas as alturas em que a tua alegria e a tua força me deixavam nas nuvens. E aí, minha querida Adelaide, faço os possíveis por te imitar e continuar a minha vida a sorrir como se não houvesse amanhã...)
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